2010/06/18

José Saramago 1922-2010


«O cão das lágrimas não se misturou com os antigos companheiros de matilha e caça, a sua escolha está feita, mas não é animal para ficar à espera de que o alimentem, já vem a mastigar não se sabe quê, estas montanhas de lixo encerram tesouros inimagináveis, tudo está em buscar, revolver e achar. Que revolver e buscar na memória vão ter também, quando a ocasião se apresentar, o primeiro cego e a mulher, agora que já aprenderam os quatro cantos, não da casa onde vivem, que tem muitos mais, mas da rua onde moram, as quatro esquinas que passarão a servir-lhes de pontos cardeais, aos cegos não Ihes interessa saber onde está o oriente ou o ocidente, o norte ou o sul, o que eles querem é que as suas tenteantes mãos Ihes digam se vão no bom caminho, antigamente, quando ainda eram poucos, costumavam usar bengalas brancas, o som dos contínuos golpes no chão e nas paredes era como uma espécie de cifra que ia identificando e reconhecendo a rota, mas, nos dias de hoje, sendo cegos todos, uma bengala dessas, no meio do retintim geral, seria pouco menos do que inútil, sem falar que, imerso na sua própria brancura, o cego poderia chegar a duvidar se levaria alguma coisa na mão. Os cães têm, como se sabe, além do que chamamos instinto, outros meios de orientação, é certo que, por serem míopes, não se fiam muito da vista, porém, como levam o nariz bem à frente dos olhos, chegam sempre aonde querem, neste caso, pelo sim pelo não, o cão das lágrimas alçou a perna nos quatro ventos principais, a aragem se encarregará de o guiar até casa se algum dia se perder.»

[ensaio sobre a cegueira]

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