«O dinheiro, ou a marcha do dinheiro, nunca penetrou no recinto sagrado da História como um movimento revolucionário autónomo
Há momentos no arco de uma vida humana em que o mundo muda. O
assassínio de JFK. A pegada de Neil Armstrong na poeira lunar. Maio de 68. O
caso Watergate. Os tanques soviéticos em Praga. A queda do Muro de Berlim. A
libertação de Nelson Mandela. A morte de Mao. A retirada de Saigão. A queda do
Xá da Pérsia. A invasão do Afeganistão. As duas guerras do Golfo. O massacre de
Tiananmen. O 11 de setembro. A primavera árabe. Os últimos 50 anos tiveram
inesperados momentos. Nenhum teve que ver diretamente com a riqueza das nações.
O dinheiro, ou a marcha do dinheiro, mesmo na fase mais materialista da
civilização em que os devotos acampam para comprar o último modelo tecnológico
de si mesmos (um i qualquer), nunca penetrou no recinto sagrado da História como
um movimento revolucionário autónomo. O capitalismo, sendo a única carpintaria
disponível depois do colapso do comunismo, tratou da vida mantendo a
prosperidade ocidental e o que faz dos seus beneficiários, servidores e criminosos uns desconhecidos. A
celebração religiosa dos criadores só começou com Bill Gates e Steve Jobs.
Ninguém estava preparado para as sequelas do de Wall Street, da crise do e da
dívida soberana. Ninguém estava preparado para ouvir a frase e considerar que
estava a assistir a um desses momentos em que o mundo muda. Os bancos não são
protagonistas da História. No dia 15 de setembro de 2008, o Lehman Brothers
declarou a falência. Nesse dia, o Dow Jones teve uma das suas quedas mais
abruptas, igual à provocada pelos ataques do 9/11. No dia 29 de setembro, quando
o Congresso chumbou o resgate de Wall Street, o Dow Jones mergulhou no abismo. O
sistema capitalista esboroava-se. Estava em Nova Iorque nesse dia. Olhei pela
televisão o pânico na Bolsa. Fui a correr para Wall Street, assistir à História
em direto. A rua era um circo de televisões e jornalistas, câmaras e holofotes,
manifestações enraivecidas com cartazes que diziam Morte ao Capitalismo.
Banqueiros habituados a deixarem o refúgio dos gabinetes pela porta da frente e
embarcarem nas limusinas, viram-se obrigados a fugir com as pastas a tapar a
cara. Os carros estavam impedidos de circular. Ver dezenas de homens poderosos,
como lhes chamou o escritor Tom Wolfe, aterrorizados pela multidão, expostos à
luz crua das televisões e a correr para a primeira boca do metro, é um
espetáculo. É uma espécie de versão pós-moderna da tomada da Bastilha. Naquela
tarde, o sistema abanou. Tal como não há almoços grátis, não há espetáculos
grátis. A Europa não seria poupada à crise sistémica, e aos tremores e choques
do terramoto financeiro. Não podia ser. Ao contrário de outros momentos
históricos, aquele era indecifrável. A maioria das pessoas não fazia a mínima
ideia do que se estava a passar. E quando foi convocada para pagar a conta do
resgate da banca, pagou porque os políticos a mandaram pagar. Na Europa, durante
mais uns anos, os chefes políticos julgaram-se a salvo da catástrofe, o que
demonstra a cegueira e ignorância. Aquilo não era um bater de borboletas que
provoca um terramoto nos antípodas. Aquilo era um terramoto que iria destruir o
mundo tal qual o conhecemos. Aquilo era o anúncio do colapso dos sistemas
políticos democráticos ocidentais, manifestamente incapazes de perceber e de
controlar os agentes financeiros, pondo-os ao serviço das economias.
As pessoas ainda não percebem o que lhes aconteceu, mas percebem mais do que
percebiam. Percebem todos os dias que a prosperidade herdada da economia
expansionista do pós-guerra está a ser terminada. Percebem que uma nova forma de
violência anda à solta no mundo, comandada por fantoches que lhes dizem num dia
uma coisa e no outro dia outra e que todos os dias, sem descanso, os ameaçam com
o despotismo de organizações sem rosto que ordenam que se faça assim mesmo
quando admitem que assim não vamos lá. Percebem que estão a ser espoliados e
que, no topo da pirâmide, o simbólico 1%, o sistema se reconstruiu e continuou
como dantes, uma plutocracia transnacional guiada pela ganância e assente na
desigualdade. Pagando aos burocratas e recrutando tecnocratas. Há quem chame a
isto destruição criativa. Percebem que a violência maior é a que impõe a
destruição do futuro. Os filhos estarão piores do que os pais. E o governo
deixou de ser do povo, pelo povo e para o povo, como disse Lincoln, para ser um
de casino. A casa ganha sempre. Este tipo de cataclismo ainda não pode ser
classificado nem categorizado. É cedo demais. Como é cedo para romper o axioma
do medo. Convém reler alguns autores, de Hobbes a Marx. Parafraseando Lincoln em
Gettysburg, o povo não desaparecerá da terra. »
[Clara Ferreira Alves in Expresso, hoje]
Sem comentários:
Enviar um comentário