2012/11/03

Clara Ferreira Alves: um governo contra um povo

 

«O dinheiro, ou a marcha do dinheiro, nunca penetrou no recinto sagrado da História como um movimento revolucionário autónomo


 
Há momentos no arco de uma vida humana em que o mundo muda. O assassínio de JFK. A pegada de Neil Armstrong na poeira lunar. Maio de 68. O caso Watergate. Os tanques soviéticos em Praga. A queda do Muro de Berlim. A libertação de Nelson Mandela. A morte de Mao. A retirada de Saigão. A queda do Xá da Pérsia. A invasão do Afeganistão. As duas guerras do Golfo. O massacre de Tiananmen. O 11 de setembro. A primavera árabe. Os últimos 50 anos tiveram inesperados momentos. Nenhum teve que ver diretamente com a riqueza das nações. O dinheiro, ou a marcha do dinheiro, mesmo na fase mais materialista da civilização em que os devotos acampam para comprar o último modelo tecnológico de si mesmos (um i qualquer), nunca penetrou no recinto sagrado da História como um movimento revolucionário autónomo. O capitalismo, sendo a única carpintaria disponível depois do colapso do comunismo, tratou da vida mantendo a prosperidade ocidental e o que faz dos seus beneficiários, servidores e criminosos uns desconhecidos. A celebração religiosa dos criadores só começou com Bill Gates e Steve Jobs. Ninguém estava preparado para as sequelas do de Wall Street, da crise do e da dívida soberana. Ninguém estava preparado para ouvir a frase e considerar que estava a assistir a um desses momentos em que o mundo muda. Os bancos não são protagonistas da História. No dia 15 de setembro de 2008, o Lehman Brothers declarou a falência. Nesse dia, o Dow Jones teve uma das suas quedas mais abruptas, igual à provocada pelos ataques do 9/11. No dia 29 de setembro, quando o Congresso chumbou o resgate de Wall Street, o Dow Jones mergulhou no abismo. O sistema capitalista esboroava-se. Estava em Nova Iorque nesse dia. Olhei pela televisão o pânico na Bolsa. Fui a correr para Wall Street, assistir à História em direto. A rua era um circo de televisões e jornalistas, câmaras e holofotes, manifestações enraivecidas com cartazes que diziam Morte ao Capitalismo. Banqueiros habituados a deixarem o refúgio dos gabinetes pela porta da frente e embarcarem nas limusinas, viram-se obrigados a fugir com as pastas a tapar a cara. Os carros estavam impedidos de circular. Ver dezenas de homens poderosos, como lhes chamou o escritor Tom Wolfe, aterrorizados pela multidão, expostos à luz crua das televisões e a correr para a primeira boca do metro, é um espetáculo. É uma espécie de versão pós-moderna da tomada da Bastilha. Naquela tarde, o sistema abanou. Tal como não há almoços grátis, não há espetáculos grátis. A Europa não seria poupada à crise sistémica, e aos tremores e choques do terramoto financeiro. Não podia ser. Ao contrário de outros momentos históricos, aquele era indecifrável. A maioria das pessoas não fazia a mínima ideia do que se estava a passar. E quando foi convocada para pagar a conta do resgate da banca, pagou porque os políticos a mandaram pagar. Na Europa, durante mais uns anos, os chefes políticos julgaram-se a salvo da catástrofe, o que demonstra a cegueira e ignorância. Aquilo não era um bater de borboletas que provoca um terramoto nos antípodas. Aquilo era um terramoto que iria destruir o mundo tal qual o conhecemos. Aquilo era o anúncio do colapso dos sistemas políticos democráticos ocidentais, manifestamente incapazes de perceber e de controlar os agentes financeiros, pondo-os ao serviço das economias.

As pessoas ainda não percebem o que lhes aconteceu, mas percebem mais do que percebiam. Percebem todos os dias que a prosperidade herdada da economia expansionista do pós-guerra está a ser terminada. Percebem que uma nova forma de violência anda à solta no mundo, comandada por fantoches que lhes dizem num dia uma coisa e no outro dia outra e que todos os dias, sem descanso, os ameaçam com o despotismo de organizações sem rosto que ordenam que se faça assim mesmo quando admitem que assim não vamos lá. Percebem que estão a ser espoliados e que, no topo da pirâmide, o simbólico 1%, o sistema se reconstruiu e continuou como dantes, uma plutocracia transnacional guiada pela ganância e assente na desigualdade. Pagando aos burocratas e recrutando tecnocratas. Há quem chame a isto destruição criativa. Percebem que a violência maior é a que impõe a destruição do futuro. Os filhos estarão piores do que os pais. E o governo deixou de ser do povo, pelo povo e para o povo, como disse Lincoln, para ser um de casino. A casa ganha sempre. Este tipo de cataclismo ainda não pode ser classificado nem categorizado. É cedo demais. Como é cedo para romper o axioma do medo. Convém reler alguns autores, de Hobbes a Marx. Parafraseando Lincoln em Gettysburg, o povo não desaparecerá da terra. »

 
[Clara Ferreira Alves in Expresso, hoje]

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