NÃO SE PODE NÃO AMAR A ITÁLIA, e não por ser um dos raros países que têm uma admiração de chofer de táxi pelos portugueses, ah, fare il portoghese, ou seja, entrar sem pagar, embora tenham sido os italianos a dar a banhada! Ficou-nos a reputação. Desde a famosa embaixada de D. Manuel que eles nos tomam por notáveis exibicionistas. Éramos grandes, nesse tempo. Dávamos conselhos imperiais ao Papa Leão X (Papa, exatamente, uma figura entretanto caída em declínio, porque o Vaticano devia ser na Noruega e não em Roma, tal como o nosso António Silva dizia num filme português ao abrir a sua janela na Costa do Castelo: "Aqui é que devia ser o Estoril!"). Era a Leão X que se dirigia o fausto da embaixada, derramando exotismo e grandeza pelas vielas romanas e dando a Dürer, o alemão (já lá iremos, aos alemães), um rinoceronte para ele desenhar sem o ter visto (o rinoceronte foi de Lisboa e afogou-se na costa italiana, um azar. O segundo rinoceronte era de D. Sebastião e o Filipe II, o filho de Carlos V casado com Isabel de Portugal, ficou com ele e com Portugal, um azar). Se a Itália não fosse a Itália não tínhamos Berlusconi, e se não tivéssemos Berlusconi, ou o palhaço Beppe Grillo, não tínhamos Fellini nem Roberto Benigni, para sermos benignos. O génio italiano é o da trapalhice numa escala cosmicamente cósmica. Leiam o Italo Calvino. Tudo é possível. Até estes resultados eleitorais. Os alemães ficam com os cabelos em pé. Um grande silêncio cai sobre Berlim. Nada de pauladas. Isso é para os lombos de mulas mansas e burros de nora, como os nossos. A Itália é gloriosamente ingovernável. Terra do Ferrari e do Lamborghini Aventador (talvez o carro mais demente do mundo). Terra de Prada e Armani. Terra de Visconti e Pasolini. Terra de Césares (gays). E terra de Michelangelo e Leonardo, para não falar dos outros. Terra de Papas, para graça e desgraça dos Papas. Quem é que se porta bem em Roma? Há tempos, tive de interromper umas férias em Florença e Siena e apanhar o comboio da noite para Munique e daí para Nuremberga e de Nuremberga para Erlangen. O coração da Baviera. E, já que falamos nisso, o coração do nazismo. Ir diretamente do Duomo de Siena e da Cúpula de Brunelleschi, para não falar do David e dos outros, para o estádio de Albert Speer é uma experiência terminal. Ficamos a perceber os desaguisados da Europa desunida. Não somos alemães e somos pobres. Scientifico, no?, como dizia o grande Totó aos seus ladrões em "I Soliti Ignoti".
Em Erlangen, aboletada num hotel com bircher müesli, tinha de ir todos os dias ao hospital. Não era agradável mas o médico alemão era o salvador e um formidável médico. Não dava analgésicos, "a dor aguenta-se". Um dia cheguei às 7h05 em vez das 7h, da matina, fui punida e atendida no fim. Entardeci no banco. Quando tinha de fazer horas ia num Fiat 500 alugado (saudades de Itália) para Nuremberga, ver o tribunal e o estádio do Speer (outra vez) e a casa de Dürer e os museus cheios de Dürer (outra vez). Por ali anda o nosso rinoceronte, o da portoghesa, todo composto. Às 5 da tarde de domingo, em Nuremberga, fecha tudo, às 6 é como se a bomba de neutrões tivesse pulverizado a população com exceção dos turcos. Não há onde jantar. Em agosto. E em setembro. E em outubro. Se está tudo fechado em Nuremberga, em Erlangen, uma cidade universitária com uma das mais importantes universidades e talvez a melhor faculdade de medicina da Alemanha (eu sei), uma cidade com estudantes, e com a Siemens, se falha a hora do jantar cedinho come-se no McDonald's da estação. Ou come-se um kebab deprimido à luz do néon. Erlangen é um largo desolado. Tem praças de uma beleza esplendorosa que dariam para mil esplanadas e a música da vida e tudo o que vibrava era um bar de tapas numa rua lateral, alusivo ao Mediterrâneo, onde se bebericava ao som de uma espanholada. As tapas eram um ersatz.
Os alemães, simplesmente, não têm jeito para viver. A dolce vita dá cabo deles. Não troco a noite de Nápoles por um serão em Munique. Não troco um penne por um bratwurst. Nem os telhados de Siena pelo castelo de Würzburg. Entra--se numa igreja alemã (a Baviera é católica, terra do pobre Bento XVI, um alemão vencido pela decadência romana), e percebe-se o sofrimento, a expiação, o sacrifício como templo da vida. Os apóstolos andam armados. Entra-se numa igreja italiana e vê-se o deboche como suprema representação da vida na arte. Os alemães pensam que a dolce vita é um nome de um cocktail esquisito. O pior é que temos de viver todos juntos na Europa. Ou a Alemanha se habitua ao sul onde tanto gosta de se banhar ou desiste. Nunca seremos alemães. Somos uns trapalhões. Uns palhaços (pobres). Uns ladrões. Scientifico, no?»
[Clara Ferreira Alves in Expresso, hoje]
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